20 de dezembro de 2008

Um conto.

Meu nome é Josué, e eu escrevo contos policiais. A Bia me deu a idéia de postar um de meus contos aqui, e é isso que estou fazendo. Este conto se chama "Da Cor Das Sombras". Espero que gostem.


DA COR DAS SOMBRAS

A janela estava destrancada, como ele havia calculado. Abriu-a lentamente, procurando ser o mais silencioso possível. Passou para dentro da casa escura, fechando a janela atrás de si. Até ali, tudo bem. O alarme não soou ante sua entrada, pois tomara precauções. Arrebentar alguns fios com um alicate tinha sido brincadeira de criança. Mais uma das utilidades da internet: você pode aprender o que quiser, inclusive como desativar sistemas de segurança sem a senha.

A internet tinha sido uma grande aliada. Através de um popular site de relacionamentos, descobrira a localização dos dois. Na primeira vez que os encontrara, dois anos e meio antes, não se preocupara em descobrir seus nomes. Guardou na memória seus rostos, faces comuns que, a primeira vista, pertenciam a cidadãos comuns. Faces que escondiam um grave pecado. Faces que sorriam, como se tivessem se esquecido do que haviam feito.

Cruzou a sala em silêncio. Vestia preto da cabeça aos pés. Achou que a cor seria bastante apropriada para o que ia fazer. O preto, ele lera uma vez, absorve todas as outras cores em si. Por isso é comum sentir calor em demasia quando se veste uma roupa preta e se sai na rua num dia quente. O preto, tido como a cor do mal, absorvia até mesmo o branco, a cor da paz e do bem.

Não se achava uma pessoa má. O que ia fazer àqueles dois nada tinha de perverso. Afinal, como pode a justiça ser perversa?

Sabia exatamente que direções tomar. Havia observado o casal por um mês inteiro. Conhecia tão bem aquela casa que era como se ele mesmo morasse ali. Não deixaria pistas. Usava luvas em ambas as mãos, ou seja, nada de digitais. A pistola que carregava tinha sido comprada de um traficante por um preço bastante salgado. Mas valeria a pena. Dificilmente a polícia chegaria ao homem. Por fim, os cabelos estavam cingidos por um saco plástico. Identificá-lo seria uma tarefa dificílima, talvez até impossível. O plano era à prova de falhas.

A porta do quarto estava entreaberta. Empurrou-a. O amplo aposento estava mergulhado na negritude. Ele entrou e fechou novamente a porta. Lá dentro, sentiu-se perfeitamente camuflado, como um camaleão em cima da folha de uma árvore. Nem mesmo o mais sadio par de olhos conseguiria notar sua presença.

Ele olhou para a cama. Usava um par de óculos especiais de visão noturna – mais uma iguaria que podia ser comprada em qualquer site de vendas. O casal estava enrolado em lençóis, obviamente nu. Sérgio e Ana. Esses eram seus nomes. Ela estava deitada de bruços, uma das mãos embaixo da cabeça, como se fosse mais confortável que o próprio travesseiro. O outro braço estava caído do lado de fora da cama. Sua respiração era alta e pausada.

Tirou a pistola do coldre. Não precisava se incomodar com o barulho do tiro, o silenciador resolveria. Apontou para a cabeça da mulher.

O brilho que surgiu do cano da arma decretou o fim dela.

Pronto. A primeira parte estava feita. Restava esperar. O quanto fosse necessário.

Ali, nas sombras do quarto.

* * *

Sérgio dirigia o carro numa velocidade que deixaria o Papa-Léguas comendo poeira.

Tinha bebido, é claro. E fumado um pouco de maconha. Ora, qual era o problema? Porque o governo tinha de dizer o que você pode ou não usar? Seu pai era juiz, um homem que garantia que aqueles que desrespeitassem a lei pagassem por isso. Mesmo assim, não se importava. O corpo era seu, não era? Além disso, o pai não ia descobrir.

Ana ia ao seu lado, no sétimo sono. A namorada tinha longos cabelos negros, lábios carnudos, corpo de sereia. Mesmo com os olhos pesando e a mente dando voltas, ele se concentrou na beleza da mulher que, ele esperava, logo poderia chamar de esposa.

Ela usava uma saia que deixava à vista parte das coxas. Sérgio não resistiu. Mantinha um olho no que o interessava e outro na estrada. Sempre fora um bom motorista, umas cervejas e um beck não iam lhe dizer o contrário. A mão direita alcançou a coxa de Ana, uma imensidão de maciez. Amava aquela mulher. Mesmo meio chapado, reconhecia nisso extrema seriedade. Apertou a coxa com mais força. Ana se mexeu na poltrona. Sonhando, quem sabe.

- CUIDADO! – gritou alguém no banco de trás.

Mas Sérgio não conseguiu olhar à tempo para a estrada. O carro bateu em alguma coisa, que rolou pelo teto e terminou por cair novamente na estrada, atrás do veículo. Sérgio meteu o pé no freio, o que fez o carro balançar como gelatina antes de parar por completo.

Fez-se silêncio. Sérgio continuava a olhar para frente – para a noite que caíra, derramando trevas pelo mundo – como se temesse o que seus olhos encontrariam se olhasse para trás. Podia ouvir os gritos que vinham de lá de fora, gritos de puro de desespero. Em seguida, choro. Um choro que cortava a noite. Um choro que não parecia humano, mas que sem a menor dúvida era. Isso foi o que assustou Sérgio. Não foi o fato de ter atropelado alguém, não foi a certeza de que uma vida poderia ter sido tirada pelo fato de um par de coxas ter prendido sua atenção mais do que a estrada pela qual seguia em alta velocidade. Foi o choro. O choro meio-humano.

- Caramba, cara, que coisa foi essa?! – balbuciava alguém no banco de trás.

- Cala a boca, O.K.? – ordenou Sérgio, tentando ordenar seus pensamentos. Tinha duas opções. Uma era ficar ali e oferecer ajuda, praticar um ato de boa ação para tentar amenizar a besteira que tinha feito. A outra o atraia mais. Ela envolvia infringir a lei uma vez mais. Fugir sem prestar socorro numa situação como aquela decretaria sua sentença: cadeia por um bom tempo. Isso se o homem – o que chorava – anotasse a placa do carro, o que achava difícil dada a escuridão da noite, e se a pessoa que tinha atropelado realmente morresse ou sofresse algum dano sério. Por falar nisso, quem será que tinha atropelado?

Não teve tempo para pensar naquilo. Duas pesadas mãos bateram no capô do carro.

- Você, seu desgraçado! – disse o homem. Um de seus braços enormes entrou pela janela aberta, e uma mão símia agarrou a garganta de Sérgio.

Foi quando Sérgio recebeu ajuda. A pessoa que estava no banco de trás surgiu no nada, desferindo um soco no homem que tentava sufocá-lo, que caiu na estrada, soltando um urro de dor.

- Pisa, pisa, pisa!!! – gritou o que desferira o soco. Sérgio obedeceu. Seu pé pressionou o acelerador, o carro se pôs em movimento, ganhando mais e mais velocidade.

Ao longe, o choro se fez ouvir uma vez mais. Foi esse som malévolo que acordou Sérgio.

Abriu os olhos, sentindo o corpo molhado de suor. Maldito sonho. Já era a quarta vez no mês. Tinha de cuidar daquilo, ir ver um psicólogo. Mas com que cara ia dizer que estava sendo assombrado pela lembrança do dia em que atropelara alguém e fora embora sem prestar socorro? Afastou a hipótese, balançando a cabeça. Precisava de um drinque.

Lembrou-se de Ana. Lembrou-se que ela estava ao seu lado, sua esposa, dormindo, assim como estivera dormindo naquele dia. Tinha sido incrível. A batida, a freada brusca, o homem tentando sufocá-lo, nada disso tinha sido suficiente para interromper seu sono. Passou a mão carinhosamente por seus cabelos pretos.

O líquido quente impregnou sua mão. Sangue, o sangue de sua mulher.

As luzes se acenderam, cegando-o por um momento. Quando se acostumou a elas, viu que ele estava na sua frente, sentado numa cadeira de balanço. Sorria. Um sorriso que não parecia humano, mas que sem a menor dúvida era. O sorriso meio-humano.

- Eu a matei, Sérgio – disse ele, saboreando as palavras. – Assim como você matou meu filho.

Sérgio engoliu em seco. Sua mão estava encharcada do sangue da esposa.

- Agora você vai me matar? – conseguiu articular.

- Ah, vou.

A pistola foi acionada. Três vezes.

Estava feito.

* * *

Rogério olhava para os dois corpos. Sérgio e Ana Maria Pezzini. Casados há apenas um ano. Mortos à tiros na cama de casal que dividiram por tão pouco tempo.

O inspetor mantinha as mãos nos bolsos. Esperava que os detetives ao redor não percebessem sua consternação. Observou enquanto os corpos eram removidos. A cama era uma piscina de sangue. Os lençóis antes brancos tinham adquirido uma coloração que não lhes era peculiar.

A perícia havia encontrado quatro cápsulas, já enviadas para a análise. Calibre 45, arriscara o chefe dos peritos. Só teriam certeza no dia seguinte.

Rogério sentia os olhos pesados. Só havia sido chamado por que todos sabiam de sua amizade com o casal agora morto. O delegado de plantão salientara o quanto era importante que aquele caso fosse resolvido com rapidez e precisão. Sérgio era filho de um juiz, e filhos de pessoas importantes, mesmo quando mortos, acabam recebendo tratamento diferenciado.

Saiu para fumar. Um vício terrível, ele sabia, mas seu vício. Acendeu o Marlboro, sugou a fumaça, expeliu-a para a escuridão da noite. Os pulmões adquiriram uma temperatura mais quente ante a ação das mais de seis mil substâncias presentes no cigarro. Ao terminar, jogou-o no chão displicentemente. A brasa brilhou enquanto era arrastada pelo vento.

Quem mataria seus dois amigos? O ângulo dos tiros indicava que Ana havia sido a primeira a morrer. O tiro na cabeça foi certeiro. Ela sempre tivera sono de pedra. Morrera, por assim dizer, em paz, a mente preocupada com nada além de seus sonhos.

Sérgio, no entanto, fora alvejado três vezes. Outro fato interessante era que havia sangue em sua mão direita, provavelmente o de Ana. Rogério podia imaginar o quadro. O assassino entra, sem fazer barulho, e mata Ana. Em seguida, esconde-se nas sombras. Talvez devido ao barulho do tiro, Sérgio acorda e descobre que a esposa está morta. Não tem muito tempo para lamentar sua perda: três tiros o fazem voltar a dormir.

Pronto.

O “como”, Rogério tinha quase certeza de ter descoberto. Restava o “porque”.

Fumava o segundo cigarro quando o homem projetou-se a sua frente. Estava coberto de roupas negras, que lhe davam um aspecto vampiresco.

- Uma tristeza o que houve aí, não é? – comentou ele, num tom jocoso.

- É, uma tristeza. – Rogério começou a se afastar do homem, quando o pensamento o atingiu como um raio: Como ele sabe o que aconteceu aqui?

- Você é o responsável pelo caso, não é? – Rogério ouviu novamente a voz do homem enquanto sua mão buscava a arma.

- Veja só como as coisas mudam. – Não conseguiu alcançar o revólver. O homem segurou sua mão com força, prendendo-a. Algo estava sendo pressionado contra suas costas. – Alguns anos atrás, você era só um idiota bêbado que fugiu de um atropelamento sem prestar socorro, junto com seu amigo.

A boca do homem de preto se aproximou do ouvido do inspetor.

- Aquele soco doeu um bocado, sabia?

Rogério sentiu o corpo inteiro esfriar, como se uma geada estivesse ocorrendo dentro dele. Olhou para a casa do amigo morto: estava fora do campo de visão dos demais policiais. Considerou a possibilidade de gritar, mas não o fez. Ao invés disso, perguntou ao homem, sentindo o frio aumentar:

- Porque matá-la? Ela não fez te nada. Sequer acordou.

Um riso meio-humano se fez ouvir. Rogério tentava controlar próprio corpo, que começara a tremer.

- Eu queria que ele sentisse o que eu senti. Mesmo que por poucos segundos. Eu teria esperado a noite toda, se fosse preciso. Ele era meu filho, rapaz. Vocês mataram meu filho. Espero que saibam exatamente porque eu estou fazendo isso.

- E o que vai fazer agora? – Rogério engoliu em seco.

- Isso.

Rogério esperou que um tiro fosse disparado. Preparou-se para a dor que certamente sentiria. Mas o homem o soltou.

Rogério não se virou imediatamente. Mal pôde acreditar que ainda estava vivo. Seu corpo permanecia frio – gelado, a bem da verdade –, mas ele ainda podia se mexer. Pegou a arma do coldre, virou-se pronto para atirar.

O homem já se distanciara alguns metros. Rogério fez a mira. Seria impossível errar.

Não chegou a apertar o gatilho. O frio espalhou-se pelo corpo, correndo por suas veias, privando-o de movimentos. A garganta secou. A vista ficou embaçada. Os joelhos bambearam. Ele caiu, arma em punho, olhos arregalados, a voz para sempre entalada.

Mais a frente, o homem de preto mantinha as duas mãos bolsos. Em um deles estava a seringa que usara para injetar o veneno no policial; no outro, uma foto.

Ele a retirou de lá. Era do filho. Ele a beijou, quase sentindo a maciez da bochecha. Havia lágrimas em seus olhos, mas estava feliz. Conseguira, finalmente. Olho por olho.

O homem de preto caminhou para dentro das trevas.



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2 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

história bem legal, porém o excesso de períodos simples incomoda um pouco na leitura. não sei se é estilo, mas digo que se for é melhor mudar XD

20 dezembro, 2008  
Blogger Lucas disse...

concordo com o expinafre, tanto qnt a historia bem legal qnt a parte dos periodos simples ;P

22 dezembro, 2008  

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